O Sudão, localizado no nordeste da África, tem sido palco de uma crise prolongada que mistura tensões étnicas, religiosas, políticas e econômicas. Com uma história marcada por guerras civis, instabilidade política e catástrofes humanitárias, o país vive um momento crítico, exacerbado por mudanças políticas e sociais internas e por influências externas que moldam o seu futuro.
Desde a independência do Sudão em 1956, o país tem enfrentado uma sucessão de crises que envolvem, sobretudo, disputas por recursos naturais, questões de governança e uma sociedade profundamente dividida. Em 2011, a separação do Sudão do Sul trouxe uma nova camada de complexidade, ao mesmo tempo em que as esperanças de paz e estabilidade foram rapidamente substituídas por novas crises. É importante informar que o país é rico em petróleo e outro, o que desperta o interesse de potências extrarregionais.
A atual guerra civil no Sudão, que eclodiu em abril de 2023, é o resultado de décadas de instabilidade política, conflitos internos e disputas pelo poder. A atual crise envolve dois principais atores militares: as Forças Armadas Sudanesas ou Sudanese Armed Forces (SAF) e as Forças paramilitares de Apoio Rápido ou Rapid Support Forces (RSF). Estes dois grupos, que outrora colaboravam, tornaram-se rivais em uma luta brutal pelo controle do país. A guerra, além de devastar o tecido social do Sudão, está gerando uma das maiores crises humanitárias da África contemporânea, enquanto várias potências regionais e globais desempenham papéis ambíguos no conflito.
Este artigo tentará analisar as origens dessa crise multifacetada, explorando desde os conflitos armados até os desafios econômicos e humanitários que afetam milhões de pessoas. A geopolítica regional, com ênfase nas influências externas de potências como Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã e Turquia, além de atores globais como China, Rússia e EUA, será um ponto central na compreensão do cenário atual.
O Sudão tem uma longa história de conflitos e fragmentações internas que remontam à sua época colonial. O país, um dos maiores em extensão territorial na África antes da independência do Sudão do Sul, já enfrentava sérios desafios internos que, em grande parte, derivavam de sua diversidade étnica e religiosa. No norte, predomina uma população árabe e muçulmana, enquanto o sul é composto majoritariamente por comunidades africanas e cristãs.
Após a independência da Grã-Bretanha e do Egito em 1956, o Sudão foi rapidamente envolvido em uma guerra civil que durou até 1972. Esse conflito entre o norte e o sul estava enraizado em questões de identidade, marginalização econômica e a centralização do poder político no norte do país. No entanto, a paz alcançada em 1972 foi temporária e, em 1983, o Sudão mergulhou em uma nova guerra civil, que resultaria na independência do Sudão do Sul em 2011.
A segunda guerra civil sudanesa, que durou de 1983 até o Acordo de Paz em 2005, foi um dos conflitos mais longos da África. Durante esse período, milhões de vidas foram perdidas ou deslocadas. A causa central foi a tentativa do governo central de implementar a sharia em todo o país, o que foi fortemente resistido pelas populações não muçulmanas no sul. O conflito terminou com a assinatura do Acordo de Paz Abrangente (CPA) em 2005, que permitiu ao sul realizar um referendo de independência. Em 2011, o Sudão do Sul votou esmagadoramente pela secessão, dividindo o Sudão em dois.
Contudo, a independência do Sudão do Sul não trouxe estabilidade para o Sudão, e tampouco para o novo Estado independente. Ambos os países enfrentaram dificuldades econômicas, com o Sudão perdendo grande parte de suas reservas de petróleo e o Sudão do Sul caindo rapidamente em um novo ciclo de guerra civil.
Omar al-Bashir assumiu o poder no Sudão em 1989 após um golpe militar, iniciando uma era de governo autoritário que durou até 2019 ou seja, trinta anos de regime ditatorial. Sob Bashir, o Sudão foi isolado da comunidade internacional, especialmente após acusações de genocídio e crimes de guerra em Darfur, uma região ocidental do Sudão. O conflito em Darfur, que começou em 2003, é um dos capítulos mais sombrios da história moderna do Sudão, resultando na morte de centenas de milhares de pessoas e no deslocamento de milhões.
Nesse sentido, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu dois mandados de prisão contra al-Bashir por crimes de guerra e contra a humanidade no conflito em Darfur.
O regime em vigor foi caracterizado por repressão brutal, com o governo frequentemente reprimindo a dissidência política, os movimentos de oposição e as manifestações populares. As sanções internacionais, principalmente dos EUA, agravaram as condições econômicas do país, que já enfrentava dificuldades severas após a perda da receita petrolífera com a independência do Sudão do Sul.
A RSF tem suas raízes nas milícias árabes conhecidas como Janjaweed, responsáveis por atrocidades durante o conflito de Darfur. Elas foram transformadas em uma força paramilitar oficial por Bashir, para equilibrar o poder das SAF e garantir sua própria segurança.
O descontentamento popular com o regime de al-Bashir cresceu ao longo dos anos, mas foi em dezembro de 2018 que as tensões culminaram em protestos generalizados. O aumento dos preços dos alimentos, a inflação galopante e a falta de recursos básicos alimentaram um movimento de oposição em massa. O governo respondeu com força letal, mas a população continuou nas ruas, exigindo o fim do regime de Bashir.
Em abril de 2019, após meses de protestos, al-Bashir foi finalmente deposto por um golpe militar. No entanto, a queda de Bashir não significou a transição imediata para uma democracia estável. O Conselho Militar de Transição (TMC) assumiu o controle, e as tensões entre os militares e os grupos civis que lideravam os protestos se intensificaram.
Após a queda de al-Bashir, o Sudão entrou em uma fase de transição complexa e frágil. Em agosto de 2019, um acordo de compartilhamento de poder foi assinado entre o Conselho Militar de Transição e a aliança das Forças de Liberdade e Mudança (FFC), um grupo de partidos políticos e movimentos da sociedade civil. O acordo previa um governo de transição com uma liderança compartilhada entre civis e militares, com o objetivo de realizar eleições democráticas em 2023.
Contudo, essa transição foi marcada por crises constantes. As tensões entre os militares, que desejavam manter sua influência sobre o governo, e os civis, que buscavam reformas democráticas, criaram um impasse político. A situação foi agravada pela instabilidade econômica, o impacto da pandemia de COVID-19 e o ressurgimento de conflitos internos, como na região de Darfur.
A RSF, liderada por Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, foi integrada ao governo de transição ao lado das SAF, lideradas pelo general Abdel Fattah al-Burhan.
Em outubro de 2021, a transição sudanesa sofreu um golpe decisivo quando os militares, liderados pelo general Abdel Fattah al-Burhan, dissolveram o governo de transição, prenderam líderes civis e declararam estado de emergência. Esse golpe foi amplamente condenado pela comunidade internacional, resultando na suspensão de ajuda financeira e sanções adicionais.
O golpe de 2021 colocou em risco as já frágeis esperanças de uma transição democrática. Milhares de sudaneses foram às ruas em protesto, e a repressão das forças de segurança resultou em mortes e feridos. As negociações mediadas por atores internacionais, incluindo a ONU e a União Africana, foram iniciadas para restaurar a transição, mas sem sucesso.
Surgiram tensões entre as duas facções - SAF e RSF - sobre o futuro da integração militar e a transição para um governo civil e, assim, em abril de 2023, as divergências entre elas explodiram em violência, com ambos os lados tentando consolidar seu domínio sobre o Sudão que levaram à atual guerra aberta, em que novamente crimes de guerra têm sido cometidos.
As SAF, uma instituição militar convencional com uma longa história, controlam grande parte da infraestrutura e dos recursos militares do país. Em contraste, a RSF é uma força paramilitar mais móvel e ágil, com maior influência em áreas rurais e em operações de contrainsurgência.
A rivalidade entre al-Burhan e Hemedti, motivada tanto por ambições pessoais quanto por discordâncias estratégicas sobre a direção do país, se intensificou, levando a uma luta pelo controle da capital, Cartum, e outras regiões estratégicas.
Um aspecto central deste conflito é o colapso do acordo de transição para o governo civil, mediado por atores internacionais, incluindo a União Africana (UA) e a ONU. A desconfiança entre os militares e os civis, exacerbada pelo fracasso em alcançar um consenso sobre a integração das RSF nas SAF, contribuiu para a escalada. Enquanto as SAF buscam manter a estrutura militar tradicional intacta, Hemedti (RSF) teme perder o poder e a autonomia de sua força paramilitar, o que o levou a agir de forma antecipada, iniciando os confrontos.
A guerra civil no Sudão não é um conflito isolado. Como muitas guerras civis contemporâneas, ela envolve potências regionais e internacionais, que têm interesses variados no país. O Sudão é estrategicamente localizado no nordeste da África, controlando acesso ao Mar Vermelho e fazendo fronteira com países como o Egito, a Etiópia e o Chade, todos com interesses diretos em sua estabilidade (ou instabilidade).
O Egito, por exemplo, tem uma longa história de envolvimento nos assuntos sudaneses. O governo egípcio apoia as SAF de al-Burhan, com quem mantém laços estreitos, visando preservar a estabilidade na fronteira sul e assegurar seus interesses estratégicos na bacia do Nilo. A Etiópia, por outro lado, está envolvida em uma disputa com o Egito e o Sudão em relação à Grande Barragem da Renascença Etíope (GERD). Embora a Etiópia mantenha uma posição relativamente neutra no conflito, a continuidade da guerra sudanesa serve para distrair os esforços egípcios contra a barragem. Sugerimos a leitura dos nossos artigos que abordam a tensão entre Egito, Etiópia e o Sudão relacionado ao Rio Nilo:
"A Geopolítica do Nilo: controle da água. Possível fonte de conflito ou de cooperação?", de 02 de agosto de 2020, disponível em https://www.atitoxavier.com/post/a-geopolítica-do-nilo-controle-da-água-possível-fonte-de-conflito-ou-de-cooperação; e
"Geopolítica do Nilo Parte II. Possível escalada da crise", de 07 de março de 2021, acessível em https://www.atitoxavier.com/post/geopolítica-do-nilo-parte-ii-possível-escalada-da-crise.
Outros atores regionais, como a Turquia e o Irã estariam apoiando a SAF por meio de envio de armamentos, enquanto a Rússia e os Emirados Árabes Unidos (EAU) estariam apoiando, da mesma forma, a RSF. Além disso, a Arábia Saudita, que sediou algumas tentativas de negociações de paz, está particularmente interessada em manter a estabilidade marítima na região. Esses países, que têm apoiado tanto as SAF quanto a RSF em momentos diferentes, buscam manter influência no Sudão devido à sua localização estratégica perto do Mar Vermelho. Na esfera global, as potências ocidentais, incluindo os Estados Unidos e a União Europeia, tentaram mediar a paz, mas com impacto muito limitado. Convém mencionar que ambas as partes em conflito têm demonstrado pouca disposição para compromissos, e a interferência externa, muitas vezes, é vista como parcial ou ineficaz.
Em nosso artigo, que sugerimos a leitura, "A nova base russa e a sua importância geopolítica", de 30 de novembro de 2020, disponível em https://www.atitoxavier.com/post/a-nova-base-russa-e-a-sua-importância-geopolítica, afirmamos que os russos eram um dos principais fornecedores de armas para o Sudão, e que o estabelecimento de uma base no Sudão, a primeira dos russos na África após o fim da União Soviética, seria geopoliticamente muito importante para a Rússia, pois aumentaria o alcance do seu poderio político-militar na região do Mediterrâneo, Oriente Médio e África, o que colocaria pressão na OTAN. Assim, compreendemos o motivo do interesse russo no país.
Dessa forma, existem relatos que a Ucrânia estaria apoiando a SAF, por intermédio de conselheiros de suas forças especiais, fazendo o contraponto do apoio russo à RSF.
É digno de nota que a RSF tem enviado combatentes, como mercenários, para lutar no Iêmen contra os Houthis. Há também relatos de envio de combatentes para a Líbia. Essas informações nos ajudam a compreender as razões de alguns países estarem apoiando tanto a SAF quanto a RSF.
Logo, podemos ver que a Guerra Civil sudanesa tem sido, em seu território, um prolongamento de disputas de outros países.
Portanto, o futuro do Sudão permanece incerto. As tentativas de mediação internacional têm sido fragmentadas e frequentemente ineficazes devido à falta de unidade entre as potências regionais e internacionais, ainda mais porque há interesses geopolíticos envolvidos. Com isso, a ausência de um consenso sobre como resolver a crise e os interesses divergentes entre os apoiadores das SAF e das RSF prolongam o conflito.
A guerra civil no Sudão desencadeou uma das piores crises humanitárias do mundo em 2023 e 2024. Estima-se que centenas de milhares de pessoas foram deslocadas dentro do país e para nações vizinhas, como Chade, República Centro-Africana e Egito.
As condições em Cartum e outras grandes cidades sudanesas se deterioraram rapidamente, com falta de alimentos, água e medicamentos, enquanto a violência continua aumentando e impede o acesso das organizações humanitárias.
As mulheres e crianças estão entre as mais afetadas, enfrentando graves violações de direitos humanos, incluindo violência sexual. A insegurança alimentar é um dos maiores desafios, exacerbada pela interrupção do plantio e colheita agrícola e pela destruição de infraestruturas básicas. As agências de ajuda humanitária, como o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), alertaram que milhões de sudaneses enfrentam fome iminente se a guerra continuar. Esta guerra está sendo conhecida como uma das mais terríveis do mundo no tocante à fome da população civil.
Além disso, o conflito exacerbou as tensões étnicas e tribais em regiões como Darfur, que já enfrentava violência antes da guerra civil. Milícias locais, muitas vezes alinhadas com as RSF, continuam a aterrorizar civis nessas áreas, com assassinatos em massa e destruição de vilarejos inteiros. A situação de segurança em Darfur é particularmente alarmante, pois revive memórias das atrocidades cometidas na década de 2000.
A figura a seguir nos mostra um resumo da situação humanitária caótica enfrentada pela população civil sudanesa.
Nesse cenário, nos chama atenção a total falta de engajamento da comunidade internacional com a Guerra do Sudão, inclusive do governo brasileiro, que tem a pretensão de ser um importante player na África, estando mais preocupado com os assuntos da Ucrânia e de Gaza, que estão muito mais distantes. A única manifestação do governo tem se limitado a pequenas notas à imprensa do Ministério das Relações Exteriores.
O Blog é de opinião que a guerra civil entre a SAF e a RSF mergulhou o Sudão em uma crise devastadora, com implicações profundas tanto para o país quanto para a região. A competição por poder entre al-Burhan e Hemedti, somada aos interesses regionais e globais no conflito, dificulta a resolução do impasse. Com uma crise humanitária em rápida escalada, o Sudão se tornou mais um exemplo trágico dos custos da guerra civil prolongada, deixando um futuro incerto para sua população. Daí termos a pergunta que não quer se calar: "porque o mundo não se engaja para resolver esse conflito?"
Qual a sua opinião?
Seguem alguns vídeos para auxiliar a nossa análise:
Matéria de 22/08/2024:
Matéria de 27/03/2024:
Matéria de 15/02/2024:
Matéria de 11/10/2024:
Matéria de 02/10/2024:
Matéria de 19/04/2023:
Matéria de 21/04/2023:
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